domingo, 2 de dezembro de 2007

Internet nos Celulares - A próxima fronteira do Google

Com o anúncio de um software para celulares, o gigante da web quer transformar o negócio das telecomunicações

Se ainda havia alguma dúvida sobre as ambições digitais do Google, ela deve ter desaparecido com as notícias do começo de novembro. O gigante da web surpreendeu mais uma vez: sua entrada no mundo da telefonia móvel não será com um aparelho, como fez a Apple. Em vez do esperado GPhone, foi anunciado o Android, um sistema operacional aberto e gratuito que nasceu com a pretensão de remodelar a indústria das telecomunicações. À frente de 33 fabricantes de aparelhos e operadoras de celulares, o Google quer ter no mundo das comunicações móveis o mesmo impacto que teve na web: mudar as regras do jogo -- nada menos que isso. Embora os telefones móveis sejam cada vez mais parecidos com computadores de bolso, capazes de acessar a internet e rodar programas sofisticados, eles ainda estão sujeitos a travas e controles. Os fabricantes de aparelhos instalam somente os programas que mais lhes convêm. O mesmo vale para as operadoras, que atuam como "porteiros" entre o usuário e a web: direcionam seus clientes a serviços ou programas próprios ou de seus parceiros. É esse modelo que o Google e seus aliados da Open Handset Alliance, algo como Aliança para os Celulares Livres, querem mudar.

Apesar de todo o charme e o interesse que cercam tudo o que diz respeito à estrela da internet, por enquanto o sistema Android ainda está restrito aos engenheiros. Quem esperava um anúncio tão impactante como o do iPhone certamente ficou frustrado. Os poucos aparelhos já equipados com o Android só podem ser vistos em curtos vídeos, e nenhum deles tem o brilho de marketing característico da Apple. Mas a ausência do impacto midiático não deve ser confundida com o poder de transformação. Assim como o iPhone, o Android pode mudar de forma decisiva o que se entende por um telefone celular. A primeira novidade importante do sistema é que ele é gratuito e aberto, ou seja, fabricantes de aparelhos e operadoras poderão utilizá-lo sem ter de pagar nada.

O mesmo vale para programadores ao redor do mundo. Todos já podem baixar um kit básico e começar a escrever programas para o Android. O Google quer que o sistema gere um interesse semelhante ao do sistema Linux, que conta com a colaboração voluntária de milhares de programadores ao redor do mundo. "A história mostra que os sistemas abertos sempre ganham", disse a EXAME Andy Rubin, responsável pelo desenvolvimento do sistema de celulares. Mas há uma novidade importante no modelo de colaboração proposto pelo Google: a empresa vai distribuir 10 milhões de dólares em prêmios para os melhores software criados para o Android. O objetivo é conquistar também aqueles desenvolvedores que hoje se dedicam aos principais sistemas concorrentes, o Windows Mobile, da Microsoft, e o Symbian, dominado pela Nokia.

Mas o desafio não termina aí. Será preciso conseguir uma ampla rede de distribuição, ou seja, garantir que o sistema Android seja de fato adotado por fabricantes e operadoras. Hoje, quem cria um software para um aparelho móvel é obrigado a adaptá-lo para uma série de sistemas concorrentes. O interesse dos desenvolvedores, portanto, será diretamente proporcional ao número de celulares Android em uso. Steve Ballmer, presidente mundial da Microsoft, foi irônico quando questionado a respeito da incursão do Google no mundo móvel. "Por enquanto, eles têm apenas um comunicado de imprensa", disse Ballmer, com um sorriso no rosto. "Nós já temos nosso sistema em 150 aparelhos diferentes, relacionamento com outras 150 operadoras e só neste ano vendemos 20 milhões de smartphones equipados com o Windows Mobile."


Não é um celular

O Google não anunciou um aparelho, como muitos esperavam, mas um sistema de software que poderá ser usado em diversos celulares.Veja o que o Google quer mudar no mundo dos celulares


Como é hoje O que quer o Google
Sistema operacional É licenciado para os fabricantes de aparelhos por empresas como Microsoft e Symbian Distribuir o sistema gratuitamente, num modelo livre: o software pode ser modificado à vontade
Programas É necessário fazer adaptações para cada tipo de aparelho Os programas vão funcionar em todos os celulares
Operadoras Procuram limitar o acesso dos usuários a conteúdos e serviços próprios ou de seus parceiros Criar um ambiente aberto de distribuição de conteúdo e serviços nos mesmos moldes da internet

Apesar do começo tardio, ninguém duvida que o Google tenha entrado de cabeça nas comunicações móveis. O vídeo que anunciou o lançamento do kit técnico foi gravado por Sergey Brin, um dos fundadores da empresa -- algo notável, uma vez que ele e Larry Page raramente aparecem falando de produtos ou iniciativas específicas. O que interessa ao Google é uma possibilidade de ampliar de forma dramática o consumo de seu ganha-pão: a publicidade. Existem em uso no planeta quase 3 bilhões de telefones celulares, quase três vezes o número de usuários de internet. Além disso, a tecnologia finalmente permite a fabricação de aparelhos sofisticados o suficiente para que os equipamentos tenham um desempenho comparável ao de um PC tradicional. A visão do Google é que o uso que se faz de um aparelho móvel será muito parecido com o de um computador conectado à rede, ou seja, os serviços serão gratuitos para o usuário final -- quem vai pagar a conta serão os anunciantes. A questão é que, embora faça sentido no ambiente aberto da web, esse modelo não é tão óbvio assim para as telefônicas. EXAME procurou todas as principais operadoras móveis do país, e elas não têm nada a dizer por enquanto. Nem mesmo a Vivo quis se pronunciar -- e a Telefônica, um dos sócios da empresa, faz parte do consórcio Open Handset Alliance.

UM DOS TEMORES DAS OPERADORAS diz respeito à perda de controle. A Vivo, por exemplo, tem a maior parte de sua rede construída sobre um sistema chamado Brew, criado pela empresa Qualcomm. Todos os programas ou conteúdos precisam de um carimbo de aprovação da Vivo antes de chegar aos usuários. O modelo, também conhecido como "jardim fechado", é semelhante ao criado pela America Online nos anos 90 -- e que foi derrotado pela internet. No desenho aberto proposto pelo Google, os clientes poderiam escolher o software que desejassem de um número muito maior de fornecedores. Com isso, uma empresa de telefonia móvel perderia hoje o poder de ditar -- ou vetar -- como seus clientes vão utilizar a internet móvel. Em outras palavras, as operadoras móveis teriam um papel semelhante ao das fixas no mundo da banda larga: seriam meramente fornecedoras das conexões, enquanto os serviços de valor agregado ficariam com terceiros. "Acho que existe risco para as operadoras, ao passo que o poder que elas exercem sobre o controle de conteúdo dos celulares deverá diminuir", diz Greg Sterling, analista sênior da consultoria Ovum, especializada no mercado de telecomunicações. Rubin, do Google, diz que não se trata disso. "As operadoras podem personalizar o software à vontade", disse ele. Ou seja, entre as modificações que elas podem fazer no Android está também a colocação de travas. "Não temos a intenção de mudar o modelo de negócios de ninguém." Apesar das declarações, duas das maiores operadoras do mundo, Vodafone e AT&T, ficaram de fora do clube montado pelo Google.

Outra potencial resistência vem do lado dos fabricantes. Apesar de contar com a adesão de empresas líderes, como Samsung e Motorola, ficaram de fora da Open Handset Alliance a Nokia, maior vendedora de aparelhos do mundo, e a Sony Ericsson, que vem crescendo com consistência no nicho de aparelhos sofisticados. Também ficou de fora a Apple, que já vendeu mais de 1 milhão de iPhones neste ano e tem a meta de chegar a 10 milhões de unidades vendidas em 2008. A Apple vai criar um programa próprio para alistar criadores de software, e os detalhes devem ser divulgados em janeiro. Quem mais apareceu nos anúncios foi a HTC, empresa de Taiwan que começou fabricando aparelhos para outras marcas e que de dois anos para cá lançou uma marca própria. A HTC promete ter dois ou três modelos com o sistema Android no ano que vem -- mas continuará lançando sua principal linha de produtos com o sistema da Microsoft.

Existem muitos senões a respeito da entrada do Google no negócio da telefonia, mas há também uma certeza: os consumidores querem mais liberdade. Se por um lado os software de telefone têm de ser mais seguros e íntegros -- já imaginou um celular que deixe de fazer ligações por causa de um programa instalado pelo usuário ou, ainda pior, por um ataque de vírus? --, por outro há o clamor pela internet que caiba no bolso e seja livre e aberta como a que é usada nos computadores tradicionais. O Google já provou ser capaz de inverter a lógica da internet uma vez. Prepare-se: o segundo ato acaba de começar.

Fonte: Revista Exame - 15/11/2007